Só de pensar em errar e na vergonha de ser julgada já dá pra sentir o calafrio subindo a espinha, né?
Eu sei, sempre funcionou assim, por aqui também.
A gente só quer acertar e ter aprovação. Da família, dos amigos, do marido, dos vizinhos, do chefe, dos colegas de trabalho, do cachorro, do papagaio e até de quem a gente nem conhece.
Extenuante.
Irreal.
Absolutamente inalcançável, amada!
Enquanto a gente só aceita a perfeição e o acerto, a gente se paralisa.
Se desumaniza.
E O MEDO DO ÓBVIO E INEVITÁVEL, QUE É ERRAR, vira um bichão que nos bota numa gaiola e vai arrancando lasquinhas nossas, todo dia. Quando a gente se deita, quando se levanta, enquanto lava louça, toma banho, o tempo todo.
Vamos minguando, dando passinhos pra trás e lá pro fundinho da gaiolinha.
‘Eu num vô sair daqui, o erro tá la me esperando. E eu nem tenho mais idade pra enfrentar isso. Nemm!’
O que a gente não costuma saber (ou lembrar), amada, é que o medo e o erro cagam de medo da ação. Da coragem honesta e humilde de tentar.
Quando você gira a chavinha, bota a ponta do pezinho pra fora e estica a cabeça, você enxerga que, apesar real, esse bicho nem é tão feio e tão grande assim.
E a cada passinho seu pra frente, ele dá dois pulos pra trás. E a coragem vai chegando.
Uma coragem feita de microcoragenzinhas, que não vão eliminar o erro, mas vão te ajudar a vê-lo como uma bela de uma oportunidade de crescer e de se libertar de muitas crenças e bobagens.
Quem nunca errou nem nasceu. Quem pouco errou, pouco sabe. Quem muito errou, muito aprendeu (as crianças sabem disso!).
Saiba que todo mundo que te inspira um dia rompeu esse medo desproporcional do erro e do julgamento. Primeiro pq entendeu que o mundo não tá assim tão prestando atenção em tudo o que a gente faz (Isso é ego puro). E segundo pq desencanou e viu que não há caminhada humana sem erro, aprendizado e reajuste de rota.
O erro é uma espécie de degrau ou saliência SEMPRE PRESENTE na pista rumo à seja-lá-onde-você-gostaria-de-estar ou quem-gostaria-de-ser.
Então, vai lá errar logo, mulher.
Abraça esse bichão, chama de seu, pega na mãozinha dele e caminha. Livre!
"Tudo o que fazemos é marcado pela fragilidade da nossa condição. Somos essa coisa humana, provisória, incerta, inacabada, imperfeita.
Mas somos também poeira enamorada. Há em nós alguma coisa de maior, mesmo no erro.
Beckett dizia: errar, errar mais, errar mais, errar melhor. No erro podemos encontrar um caminho."
José Tolentino Mendonça
(Expresso, Fev., 2013)
O ‘kintsugi’, uma técnica centenária do Japão que consiste em reparar as peças de cerâmica quebradas, transformou-se numa filosofia de vida. Diante de erros e adversidades, é preciso saber se recuperar e superar as cicatrizes.
Em uma época dominada por consumismo e obsolescência programada, o mais provável é que, se um dia você levantar com o pé esquerdo, tropeçar e deixar cair a xícara do café, simplesmente se resignará a juntar os pedaços e a jogá-los no lixo. Algo impensável no Japão.
Há cinco séculos, surgiu no Extremo Oriente o kintsugi, uma apreciada técnica artesanal com o objetivo de reparar uma tigela de cerâmica quebrada. Seu proprietário, o xogum Ashikaga Yoshimasa, muito apegado a esse objeto indispensável para a cerimônia do chá, mandou consertá-lo na China, onde se limitaram a fixá-lo com alguns grampos toscos. Insatisfeito com o resultado, o senhor feudal recorreu aos artesãos de seu país, que propuseram finalmente uma solução atrativa e duradoura. Encaixando e unindo os fragmentos com um verniz polvilhado com ouro, eles restauraram a forma original da cerâmica, embora as cicatrizes douradas e visíveis tenham transformado sua essência estética, evocando o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, a mutabilidade da identidade e o valor da imperfeição.
Assim, em vez de dissimular as linhas de fissura, as peças tratadas com esse método exibem as feridas de seu passado, adquirindo uma nova vida. Tornam-se únicas e, portanto, ganham beleza e intensidade. Alguns objetos tratados com o método tradicional do kintsugi – também conhecido como “carpintaria de ouro” – inclusive chegaram a ser mais apreciados que antes de quebrar. Desse modo, a técnica se transformou numa potente metáfora da importância da resistência e do amor próprio frente às adversidades.
O ‘kintsugi’ evoca o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, dando valor às nossas imperfeições.
A filosofia vinculada ao kintsugi pode se aplicar à nossa vida atual, repleta de ânsias de perfeição. Ao longo do tempo, conhecemos fracassos, desenganos e perdas. Mas pretendemos esconder nossa natureza frágil, que nos faz mais humanos e autênticos, sob a máscara da infalibilidade e do sucesso. Ocultamos os defeitos, embora tenhamos falhas desde que nascemos.
O jornalista alemão Adam Soboczynski diz no livro El Arte de No Decir la Verdad (a arte de não dizer a verdade) que aprendemos a camuflar “com grande esforço, e mantendo a compostura, inclusive a mais terrível das comoções que nos atingem”.
Somos vulneráveis não apenas do ponto de vista físico, mas também psíquico. Quando as adversidades nos superam, nos sentimos quebrados. Às vezes, é o acaso que nos leva ao ponto de ruptura; em outras, somos nós mesmos, com nossas elevadas expectativas não realizadas e a avidez do novo, que complicamos a nossa vida.
O filósofo catalão Josep Maria Esquirol afirma que “a memória e a imaginação são as melhores armas do resistente”. Como animais dotados de criatividade, temos uma poderosa ferramenta na capacidade de conceber alternativas à realidade. Quando sopram ventos ruins, contudo, o que mais nos ajuda a resistir à investida? Segundo a escritora norte-americana Joan Didion, a resposta é o verdadeiro amor próprio. As pessoas com essa qualidade “são duras, têm uma espécie de valentia moral; exibem essa faceta que antes se chamava personalidade”. E alcançar uma vida plena também envolve a capacidade de se livrar das expectativas alheias e deixar para trás a compulsão de agradar.
Não há recomposição, nem ressurgimento, sem paciência. No kintsugi, o processo de secagem é um fator determinante. A resina demora semanas, ou até meses, para endurecer. É o que garante a coesão e a durabilidade. Entre os cultivadores da paciência, Kafka ocupa um lugar de destaque. Para ele, a capacidade de saber sofrer e tolerar infortúnios era a chave para enfrentar qualquer situação. Um dia, enquanto passeava com um amigo, Kafka lhe deu um conselho: “É preciso deixar-se levar por tudo, entregar-se a tudo, mas conservando a calma e tendo paciência. Só há uma forma de superação, que começa superando-se a si mesmo”. A receita para viver do autor de O Processo é simples, mas nem por isso menos difícil: “Temos que absorver tudo pacientemente em nosso interior, e crescer.”
Saber valorizar o que se rompe em nós traz uma serenidade objetiva. Gostemos de nós como somos: quebrados e novos, únicos, insubstituíveis, em permanente mudança.